Minha lista de blogs

24 janeiro, 2007

O gato (aurora lunar)



A lua vigorosa e fumegante
Ardia em seu crepúsculo dourado
Laçando por entre feixes bem amarrados,
Na alta floresta de puros eucaliptos, luzes cintilantes

Vivendo tudo aquilo, as luzes e o crepúsculo
Esgueirava-se pela floresta
um gato tão pardo quanto a noite

Noite e gato fizeram-se um só
Negros como um poço sem fim,
Ou insólito como um campo espacial

Exceto pelos olhos do gato
Que gritavam na escuridão, fumegantes como a lua
Naquela noite houve três luas,
Duas, eram tangíveis

19 janeiro, 2007

Poesia baiana





Desilusão

Lilases, de Van Gogh.

Era todo desilusão, e isso lhe enfraquecia; ele nunca esteve mais vulnerável do que agora, mais oscilante do que agora. Ele amou todo o seu amor, incondicionalmente, intensamente, irrompendo em desatino e inconseqüência, como se atirasse de um penhasco sem fim, cairia por uma eternidade, e por fim, quando encontrasse o chão não morreria, pois lhe parecia demasiadamente piegas morrer por amor, morrer por paixão. Depois de uma eternidade encontrou o chão identificável do abismo (ora quente, ora frio), e dissolveu-se em dor, a dor que jamais suportaria (pensou antes de se atirar) se não encontrasse o seu chão sem suas penas e lilases.

A dor lhe era absurdamente incômoda, como gelo que se espalha num corpo vazio com a incumbência de petrificar-lhe a alma, fazendo-a tão pesada, incapacitando-a de subir e vagar, e ela, mais pesada, de forma que nunca fora antes, pareceu congelar-se apenas para que ele sentisse a dor de se entregar a uma paixão, jogando-se, como se joga de um abismo, e não encontrar as suas penas e lilases lá no fundo.

A dor ultrapassava a barreira do coração, que agora estava fino e quebradiço como pó de arroz, e invadia o seu corpo com sensações tão dolorosas quanto à dos seus sentimentos. A cabeça comprimia-se mais apertada entre o crânio, irrigando o seu sangue para a superfície do seu corpo, intumescendo a sua pele em tons de vermelho e roxo. Os membros e o dorso estavam moídos como cana de engenho.Seus olhos gritavam vermelhos entre dois círculos negros. Quando encontrou o chão do abismo sem as suas penas e lilases, converteu esse num lago, que poderia se chamar o lago do desespero (se esse não se tornasse mar), de lágrimas revoltas que não assimilavam a ausência dos lilases. E os círculos negros dos olhos, encobrindo os tons de vermelho e de roxo denunciavam as suas noites sem dormir, as suas noites de prantos e alucinações.

Deitado no chão, sem sua cama macia e colorida, sufocava-se, afogava-se na relutância das lágrimas e acovardava-se com a escuridão das aureolas negras em volta dos olhos. Não se mexia, e tentava imaginar, não fosse a dor do peito e do cérebro comprimido entre o crânio, como seria se não se jogasse, como seria se tivesse hesitado a beira do penhasco e fosse covarde como por tempos pensou em não ser. Talvez se tivesse sido dominado pelo desejo do intangível, sua dor seria diferente, menos sarçosa. Pois com os desejos intangíveis não se sofre tanto, e existe uma relação de respeito – “não te dou, mas conforta-te com a idéia de ter”, e até esse momento ele convivia harmoniosamente com o desejo, e não com a perca, não com a resolução final e o abismo sem suas penas e lilases.

Soleira duvidosa

Porta della notte, de Angello Mazzolene

Estava parado no limiar da soleira, deu um mergulho na sua vida, avaliou nuns segundos etéreos quais das chances escolheria para si. A penosa decisão dividia-se em duas estradas, uma ardilosa, outra ainda mais, distintas, como é a noite para o dia, breu e luzidio, mas qual decidir. Hesitou (enquanto mergulhava) Se o caminho mais curto lhe fosse conveniente, se abrisse àquela porta, bastante familiar, a porta que lhe soprou a vida, sabia que voltaria a enfrentar os sus antigos medos, recomeçar, recomeçar o que conhecia muito bem, a tirania, a hostilidade, a incongruência, a enfermidade gorgolejante; mas o que haveria de tão tenebroso na trivial tarefa de abrir a porta de sua própria casa. Poderia não faze-lo, daria meia-volta e sem deixar rastros sacudir a poeira dos sapatos gastos e tentar a fuga, a fuga para um mundo sem as mesmas qualidades do qual já habitava. Despertaria num mundo novo, sem fronteiras, sem limites, sem soleiras duvidosas.


Mas por que desistir de entrar, a casa que o abrigou até hoje, acolheu-o, protegeu-o, proveu-o, porque abandonar quem lhe soprou a vida, quem num momento de intraduzível prazer jorrou-lhe, como água corrente no leito de um rio, a vida. Porque abandonar o “porto seguro” (a tirania, ah... a tirania). Como sentimentos tão díspares fazer-lhe-iam tomar difícil decisão. Amor e ódio. Como poderia odiar o próprio pai amando-lhe tanto (a tirania), amor sob uma forma de adoração, admiração intransponível.

Mas se saísse, se desse meia-volta, abandonasse sua crisálida, voasse, voasse para bem longe, longe da hostilidade, longe da tirania, longe da incongruência suplicante, se voasse por pastos ora verdes, ora ocres, inconseqüentemente, à espera do intangível, à mercê do intangível, todavia longe do medo, longe das velhas sensações que o dominavam, não teria a mesma segurança (deveria se importar?), seria livre (até quando?), sobretudo livre. Suportaria os gritos desesperados: e o amor, e o amor...

Abriria, como sempre fez, a porta, e lá estaria a hostilidade e tirania personificadas em forma de pai, censurando-o, elogiando-o, suplicando-lhe amor, suplicando-lhe uma palavra terna, um simples eu te amo, você é a minha vida, eu sou criador, você criatura, é meu, me pertence e ninguém mais; seus olhos gritariam isso. Ele não falaria, era uma pedra que sofria as intempéries do tempo, da fugacidade, gasta, velha, sofrida, suplicando amor, sabia que era amado, porém, precisava de afirmação e rogava por tal, chorava todo o seu inverno, sua chuva agridoce suplicando amor.

Fugiria, deixaria no primeiro ímpeto o seu velho mundo, enfrentaria novas hostes que não suplicariam amor. Seria ferido, ganharia cicatrizes mais tênues, mais negras.

Oscilava. Quais dos caminhos escolher. A hostilidade nociva, ou a hostilidade que na mesma proporção que fere, beija, como um rio beija a sua margem, languidamente, levemente doce.

Fugiria, sim, isso lhe parecia bem obstinado. A fuga fazia parte de si, a fuga almejada. Fugiria de todas as hostilidades, dos medos, do amor. Voltou do seu mergulho. Abriu a porta, atirou-se, estava escuro como sempre, o caminho de casa. Alguém chamou o elevador e ele não veio.

Ofélia

Assim como Ofélia, seu cenho refletiu tristemente na água. Refletiu sua dor nas águas correntes de um velho rio pardacento. A sua imagem fora carregada de onde se originou, junto com ela, uma lágrima de sangue, que transformou a densidade marrom do rio em um volume escarlate.

Lá adiante, na desembocadura, explodia o crepúsculo vespertino tingindo o céu de laranja. O mar imensamente azul abrigava cardumes multicoloridos que atiravam júbilos feixes de amarelo-lilases contra o crepúsculo que tinha como companhia o chilrear alegre dos pássaros brancos.

O rio corria veloz como um golfinho em direção ao mar. Em pouco tempo o seu leito encarnecido alçaria a grandiosidade do mar azul, o crepúsculo e os pássaros.

Na praia, passeava uma criatura esplêndida.

O mar envenenou-se do rio, suas águas se misturaram e adquiriram um tom de roxo, e depois púrpura e depois de um azul tão intenso que a imagem do homem chorando sua dor saltou da água para o crepúsculo, que outrora irradiava em felicidade.

Catando conchas e pedras na areia mais branca imaginável da praia, até mais branca que os pássaros cantores, uma jovem mulher, de uma palidez robusta, cabelos negros e esvoaçantes como uma brisa, tomou-se pela imagem entristecedora. Sentiu compaixão e condescendência daquela criatura e fez da dor da imagem a sua própria, e franziu o seu cenho assim como o homem choroso o fez.

Sentiu-se ligada ao homem de alguma forma. Quando o avistou, já sem esperanças, pois era muito claro perceber isso, em seus olhos de desdenho, na insipidez da sua cor, nas rugas que formavam caminhos de lamúria em sua tez. Carecia de compaixão, decerto não era feliz, decerto não possuía um amor.

A mulher em seu desenho lapidado, pois não haveria de existir criatura tão formosa quanto ela, soube desde o primeiro instante o que aconteceria, e atormentou-se, e chorou do mesmo sangue, e sentiu a mesma dor, e pediu compaixão e implorou condescendência do seu amor por ela, e não perdeu as esperanças mesmo sabendo que o seu suposto amante teria se entregado ao infortúnio.

Quando a primeira gota do mel coronariamente vermelho desprendeu-se dos seus olhos, os pássaros de chilrear melodioso e não tão brancos quanto a areia da praia, e os cardumes que incendiavam em sua própria luz, e o crepúsculo que transbordava em energia, entristeceu-se, dessaturou, tudo foi indiscutivelmente dissolvido por um tom acinzentado, exceto o encarnecido do sangue, que beijadas pelas ondas cinzas do mar transferiu sua cor. Agora o mar era vermelho, o mar que era azul. E o rio tingido de vermelho desembocava, o rio que outrora fora pardacento.

Soube quando derramou seu sangue que o homem tinha se atirado contra o rio, era como se o seu sangue fosse o caminho dele para o infortúnio, isso a preencheu amargamente de fel, e fê-la sentir o gosto de sua decadência na boca. Sabia, mas não compreendia porque razão amava-o e que por toda a vida esperou o momento do encontro. Sabia também que ele desistiu do seu amor, que não suportou esperar e atirou-se ao rio, e a mulher, que lamentava tudo isso, foi calcada por uma dor que não se assemelhava ao sentimento do mundo.

O homem foi tomado pela correnteza do rio, apático, não auferia nenhuma reação, estava completamente envolto, submerso. Vez por outra, a virulenta correnteza do rio na sua mais intensa vermelhidão transportava-o para a sua superfície, quando podia respirar, mas esse ignorava a circunstância e inerte poupava qualquer esforço.

A amante sobressaltou-se, como num estalido, e atirou-se ao mar acreditando sofregamente que salvaria seu amado antes que esse alcançasse as águas do mar, pois essas, revolviam-se enfurecidas, as ondas infestadas de violência varriam as conchas e pedras da beira-mar. E a mulher, ou a amante, nadava exaustivamente - imaginava ser ela mesma um peixe esguio, que num leve movimento de barbatanas movia-se de um ponto a outro sem dificuldades, ou uma embarcação, que apesar do agito do mar atravessava-o sem o menor esforço.

Nadava, nadava, nadava relutantemente; nadou aproximadamente meia-hora e percorreu uma distância inferior a quinhentos metros. Estava obstinada a salvar a sua metade perdida que precipitadamente atirou-se às profundezas do rio sem a esperança de completar-se.



Um turbilhão de água, como se o mar possuísse uma rolha, atingiu a mulher que agora submergiu e com toda a sua força tentou voltar à superfície, lutou ali por mais de meia-hora, que lhe pareceu uma eternidade, e quando conseguiu enfim ver o crepúsculo dessaturado, encontrou morto o seu amado.

Chorou toda a sua mágoa e fracasso. Chorou até o mar - que um dia encobria-se e intumescia-se de azul, que abrigava cardumes multicoloridos e peixes voadores, acompanhados do brilho esplêndido da explosão crepuscular e dos cantos dos pássaros chilreantes - tornar-se deserto. E até o seu sangue que esvaia como uma cachoeira tornar-se rocha, e até tudo se dissolver completamente estando apenas no mundo ela e o seu amante morto envolto em seus braços.



O tempo

Dali

Era uma tarde fria e cinzenta de inverno, absurdamente mórbida, se assim possa existir. Mergulhado na mais completa solidão, como uma jubilosa estrela esquecida, ele permanecia parado, letárgico como nunca, olhando vago pela janela de um velho sobrado. Via pássaros, sim! eram pombos, inconvenientes, projetando as cabeças para frente repetitivamente, catando migalhas. Duvidasse houvera outra tarde tão triste quanto aquela.

Provido da mais crua realidade, resumia-se a sua própria insignificância, estava fadado àquilo. Sem amigos ou qualquer outra forma de vida - mesmo um gatinho manhoso, ideal para indivíduos sozinhos – que lhe fizesse sentido para continuar a jornada angustiante, era tolhido por pensamentos devastadores, que o levariam para o precipício.


Ainda naquela mesma tarde, que tarde obscura, como era odiosa. O homem no seu estado mais estático observando os pássaros vívidos, porém não mais alegres, encheu-se do pulmão com o ar quente dos seus cigarros que dia após dia fazia-lhe percorrer dois quarteirões. O cômodo que ocupava invadiu-se de uma nuvem espessa provocada pelos seus tragos ansiosos, ele, que exalava rabugice, barrufava os seus cálidos cigarros que aqueciam-lhe naquele tempo ártico, porém, inúteis de lhe oferecer afago. O seu semblante revelava isso.

De perfil, entre móveis de maneira nobre, quem sabe nogueira ou cedro, antíquos, imantados sob uma fina camada de poeira, num âmbito pouco iluminado, com as sombras distorcidas pela luz deficiente e aquém de ser uma mobília alegre e vivaz, podia-se ver aquele homem de rosto anguloso, nariz reto, irritante, incapaz de matar um inseto se tal tarefa lhe fosse incumbida. Estava ali, inerte, diante de sua covardia.

Fatalmente já houveram tardes de domingo bem mais cheias de vida que aquela, de um azul encantador no céu contrastando com um sol imensamente amarelo, uma pintura, uma pincelada primaz. E assim, na insipidez daquele dia onde as famílias recolhiam-se diante do frio, poucos se atreveriam a vagar pela cidade. Vez por outra, em longos intervalos de tempo, os pombos da praça que davam vista a janela do velho sobrado afugentavam-se pelos transeuntes despreocupados. O dia assumira a qualidade do tempo, apático, dessaturado. E assim também o fizera o homem.

Contudo, sabia-se que em outro tempo fora feliz, porque aquela sombra não teria nascido com ele, não fazia parte de si, tinha que ser, devia ser assim com todos e certamente o seria com aquele homem. O que teria lhe acontecido, o que já teria vivido, sim, pois não era jovem o suficiente para privar-se de experiências, era um homem de meia idade, já vivera conflitos, decepções decerto, amores, percas. Poderia um dia estar reunido entre amigos e triunfado intensamente de amor fraternal, ouvido música antiga, bebido um vinho de uma garrafa empoeirada, compartilhado as lágrimas lambendo seus rostos translúcidos de felicidade incontida. Teria sido um jovem obstinado, embalado pelo vento, que sabia degustar o sabor dos frutos, dos vinhos, correndo, atropelando-se, absorvido por emoções magníficas. E agora, mergulhado nesse breu, nas profundezas dessa floresta morta, encrustada de árvores espinhosas e todo tipo de animais noturnos, onde nunca floresceriam as mesmas emoções que o acompanhavam na mocidade.

De repente, a chuva, uma brusca queda de água do céu cinzento, um temporal, uma tempestade. Os pombos da praça escondiam-se debaixo das marquises enquanto aquelas nuvens se desmanchavam e lavavam a rua. O homem foi absorvido por aquele momento, como se a chuva estivesse lavando-lhe a alma, estivesse lavando a si mesmo, e assim criara-se uma nuvem em seus olhos também, desmanchara-se em lágrimas, pois lembrava da sua infância, correndo na chuva, as poças de lama, os pequenos riachos à beira da calçada, o cheiro de terra molhado, tudo aquilo lhe transportava para uma atmosfera que jamais voltaria, a época em que fora mais feliz, porque é assim, na infância é tudo mais claro, simples, divertido, contenta-se com pouco, é tudo mais bonito, o orvalho dominando a sebe, o canto dos pássaros, o pôr do sol, o doce mais doce, as traquinagens, os devaneios.

Ele sucumbia com a chuva, sabia que não podia recuperar aquilo, lembrava da sua vida de agora, lembrava que não era feliz, que não tinha mais amigos, que era frio, que era mole como aquela água, que era fraco. Sabia que o mundo não fazia parte dele, ou que ele não pertencia aquele mundo, era difícil de compreender, de conceber tais questões, pois ele mesmo não sabia o que pensar, não tinha se encontrado, nem mesmo sabia porque vivia daquele modo. Esquecera-se, fazia tanto tempo que se quer ocorria-lhe o motivo, a razão de penar daquela forma, encolher, diminuir-se ao longo dos tempos, não, não sabia.

Talvez tivesse perdido o rumo - como barco em tempestade, os lemes se quebraram, a popa afundava, o marinheiro desesperando-se (afundou! afundou!) e atirando-se ao mar sem pensar, sabendo que ninguém poderia imiscuir-se, que ninguém poderia salva-lo – e se entregado às drogas do mundo, à covardia, ao medo, contentando-se com o que a vida lhe oferecia, perdera a ambição, perdera aquele desatino que o embalava, que soprava como vento forte, um ciclone, uma varredura pelos seus desejos, perdera sua austeridade, sua jactância, seus adjetivos superlativos da juventude, perdera aquilo tudo, rendeu-se, rendeu-se sem questionamentos, tão facilmente, despropositadamente, rendeu-se porque foi fraco, porque não soubera conduzir a sua vida, rendeu-se como aquele dia foi rendido pelo frio, pelo cinza, sem lutar, sem lutar.

E a chuva cessou-se tão repentinamente como iniciara-se, e o homem que relembrava a sua felicidade, tentando montar as peças que o teriam levado àquele estado, como se monta um quebra-cabeças, tentando descobrir porque abandonara tudo e emaranhara-se na sombra, também encerrou-se, secou as lágrimas como as águas secaram do céu. E os pássaros saíram debaixo das marquises e voaram, voaram para onde lhes eram mais conveniente, à procura de um local seco, quente e voando refletiam nas poças formadas pela água da chuva. E a vidraça da janela também refletia o homem.

A tregédia da borboleta

foto: Cristina Oliveira


[O HOMEM]

Censurou-se no primeiro instante. Era demasiado lúgubre, mas não se importou. Sentiu-se bem, pela primeira vez, com um acontecimento funesto. Interpretou aquele momento como prazeroso, embora a morte tivesse sido o seu principal motivo, embriagou-se do seu cheiro doce e fresco.

Aturdido num turbilhão de pensamentos, aliviou-se. O barulho emudeceu. As pessoas fizeram-se na qualidade de estátuas. O ar congelou. A luz abrandou e o tempo fora interrompido, imortalizado. Tudo foi dissolvido pelo mais absurdo silêncio e invadido por lufadas de incenso fresco, doce e vivo. O ambiente que antes era caos fez-se na fugacidade do momento, insólito e estático, como se tudo fosse inanimado, exceto pela vida que sucumbiu e o homem que prazerosamente provou do seu gosto.


[A BORBOLETA]

Voava lindamente, esplendorosamente branca, cortando o ar, como remo que corta as águas
d'um rio translúcido, vagaroso... frouxo... A sua vivacidade intumesceu suas asas (branquíssimas como só as de borboletas podem ser) de sangue, e foi conduzida para o seu momento de resignação.


[A TRAGÉDIA]

A tragédia da borboleta embelezou a vida do homem, que no primeiro momento censurou-se, e um segundo depois voltou a si.

O som esgueirou-se por todo o ambiente, a luz feriu-lhe o olho, as pessoas voltaram a se agitar. Voltou viver isso tudo novamente, sentiu a brisa do ventilador atrás de si, mas essa já não soprava mais fresca.

A dor de existir

Pintura de Korneev Arkadiy

Podia ser quem quisesse. Um poeta apaixonado, que escrevia por horas a fio sobre sua amada, uma criança que falava e agia debilmente, um homem que se atazanava em seus próprios conflitos, a própria elegância e cortesia, ou ainda um fracasso. Ele só não podia ser uma só coisa interinamente. Oscilava como o tempo, que em suas frações menores que milésimos, mais infames que milésimos, faz um camaleão incorporar todas as cores do mundo, o vento mudar de direção, e um pensamento vagar de um canto a outro do cérebro.

Notava-se um distúrbio no homem, sim, tinha caráter, sim, era digno, mas algo o afetava. Sofria com tamanha facilidade, sensibilizava-se com quase tudo, que por qualquer motivo aparentemente tolo, como o desabrochar de um girassol, provocava-lhe lágrimas; embora por instantes se fizesse sisudo e severo. Tinha bom senso de humor, ótimo senso de humor, podia irradiar vendo um cachorrinho auferir-lhe gracejos, mas de vez por outra, dominado pelo tempo e suas conseqüências, no meio de um largo sorriso suas maçãs se lavavam de um líquido choroso, que, todavia não eram alegres, não, não eram alegres. Tinha um distúrbio e o tempo evidenciava-o cada vez mais.

Mesmo assim, com toda a crise, com todas as oscilações, podia ser quem quisesse, o poeta e o menino, a elegância e o fracasso, e uma atmosfera de miasma se instalava, contaminando tudo à sua volta, e para tanto só bastava-lhe imaginar. E ele, pobre homem, o homem que podia ser quem quisesse, sofria com as suas oscilações. Porque no fundo do seu âmago não suportava ser quem era, e com um suspiro enfadonho, e um pesar no semblante, com os cantos tortos da boca, desabafava para si mesmo e para os móveis encobertos de sombra como ele:

- Por que não hei de ser normal, por que não ignorar metade das coisas que se passam, e só se preocupar verdadeiramente com pelo menos dez por cento da outra metade?

Dizia isso como se fosse para diminuir a sua carga, mas só conseguia perceber o quanto estava doente, o quanto estava afetado, e o peso da sua consciência parecia cair sobre si mesmo. Quando afundava o peso do seu corpo sobre os joelhos, envergando-se, era como um “C”, um “C” de carência, e se curvando mais um pouco, formaria um “S”, um “S” de solidão, sucumbindo com o corpo, a sua consciência.

Apesar de guarnecer-se da presença de inúmeros amigos, e de milhares de pessoas, em vários ciclos diferentes que conhecia, não eram o suficiente para tapar o vazio grandioso que inflava no seu ser. Não que tais pessoas não lhe fossem importantes, mas elas somente não seriam capazes de lhe cobrir o vazio, no mínimo, gerariam-lhe um sopro na cavidade que ecoaria até o fim da sua existência, e até essa se aproximar, tornar-se-á cada vez mais obscura, mais impregnada de movimentos devastadores, mais insólita, mais solitária. E isso lhe parecia tremendamente horrível, tremendamente desesperador, infortunar-se desse modo, provar do sabor de viver com tantas pessoas diferentes quanto ele, sabendo que cada uma delas parecia-se com si, via numa a sua crueldade, noutra o justo, noutra a simpatia, noutra ainda o amante inveterado que era, e o pior de tudo era saber que todas elas tinham algo em comum com ele, mas, entretanto, cada uma delas vivia em paz com a sua própria personalidade, enquanto ele que podia ser tudo isso, pois podia ser quem quisesse e ainda assim era sozinho, e ainda que vivesse com essas pessoas e mais duas ou três gerações sucessoras a essas, estaria da mesma forma corroendo-se com o sentimento de vazio, sentindo amargamente a solidão, que criatura nenhuma no mundo poderia conhecer melhor do que ele, tão bem quanto ele, pois se podia dizer que ele é a própria solidão, mesmo com todo o burburinho, com todo o movimento, e se ele aqui tivesse um nome, ao procurar-se o significado para solidão no dicionário lá estaria estampado o seu nome naquela confusão de palavras. E se Sheakspeare ou até mesmo Virginia Woolf quisessem descrever tal sentimento, poupariam suas melodiosas e bem dizidas palavras substituindo-as pelo nome dele, que aqui não há de existir.

Bem que por diversas vezes tentou se livrar da doença, mas o seu estado de espírito não lhe permitia, a fugacidade com que mudava de opinião, isso tudo lhe absorvia; e via na tarefa mais simplória, mais ínfima, um tormento, pois se sensibilizava com quase tudo, e podia ser quem quisesse, e isso o magoava profundamente porque tudo o que tentava era se desvencilhar das oscilações e de não saber se decidir. Pois se ponha a imaginar o quanto é comum escolher carne ou peixe para o jantar, e para ele, que podia ser quem quisesse, e conhecia de quase todos os sabores, e quase todos os odores, era um tormento.

Sabia que não tinha cura para a sua doença, porque não haveria uma cura para crise de existência, e quando se toma conta disso, quando se sabe que não há cura nem razão para questões existenciais, torna-se tortuosa a vida. Do que adianta ser o que eu quiser, se no fim não hei de sanar-me com uma cura, um antídoto, um alívio, a calma... – pensava o homem mergulhado no seu engodo, mergulhado no seu miasma.

E por fim, estava certo. Porque ser o que se quiser ser, se no fim não há uma razão, não há uma explicação racional, um cálculo que determina a vida - a vida é composta de tantos por centos de matéria, de coisas intangíveis, de sentimentos, de moral, de pudor, disso e daquilo e daquilo mais. Não, não é assim, a vida é muito mais complexa, é muito mais além, é uma incógnita, um paradoxo, um momento que se tem uma única vez, que pode durar apenas um dia, meia-hora ou cem anos, mas de qualquer forma, todo esse tempo é magnificamente igual, o viver, o existir, isso sim é verdadeiramente o sentido da simples permanência. Ah, pobre do homem, pobre do homem que como esse, esteja disposto a ser o que queira e que ainda tente descobrir razão da vida.